Excerto: Envultamento
O verbo
francês envoûter (do latim vultus, efígie, retrato) se refere ao
ato de usar figuras tridimensionais chamadas dagyde (do grego para efígie
ou boneca) ou planas (desenhos ou fotografias) que imitam a pessoa a
suplicar, beneficiar, proteger ou manipular de forma que passe a nutrir laços
afetivos com outrem ou deixe de compartilhá-los. Como bem observou Aleister
Crowley, “não é suficiente pretender que a imagem de cera seja a pessoa que
você quer enfeitiçar. É necessário estabelecer uma conexão real e ser capaz
disso”. Daí o uso generalizado de pedaços de roupa,
cabelo, etc. No livro “The Golden Bough”, o antropólogo J. G. Frazer
enuncia o princípio da mímica — que isto produz isto, ou que um efeito se
assemelha à sua causa — como um dos dois princípios do pensamento mágico. O
outro chamou de “a lei de contato ou contágio”, segundo a qual “coisas que
alguma vez tiveram contato entre si continuam a agir umas sobre as outras a
distância, mesmo depois de interrompido o contato físico”. Para Frazer, freqüentemente
os dois princípios se combinam e são chamados de Magia Simpática ou Mágica
de Simpatia — a crença de “que coisas agem umas sobre as outras, à
distância, através de uma simpatia secreta”.
Teoricamente
tudo que for feito ao fetiche deve refletir no ser vivo representado, sendo a
eficácia constatada por acontecimentos simultâneos ou futuros que estabeleçam a
relação de causa e efeito. Por exemplo, certo relato passado de boca em boca
conta que, em 1968, no Haiti, um jovem foi surrado por um policial e resolveu
vingar-se levando um retrato de seu agressor a um velho feiticeiro. Este
realizou passes sobre o objeto e vaticinou: “O que você fizer à foto acontecerá
ao seu dono”. Trêmulo, o jovem haitiano furou o olho
esquerdo do retrato com a ponta de uma faca. No mesmo dia e aparentemente na
mesma hora, o policial furou o próprio olho esquerdo com uma peça de madeira
pontuda.
A “magia negra”
é anti-social, oposta aos valores instituídos. Portanto, nada mais natural do
que usá-la na intenção de destruir os representantes da ordem vigente. O poeta
latino Quinto Horácio Flaco (65-8
a .C.) teria escrito sobre os malefícios da mítica
feiticeira Medeia, que picava com alfinetes pequenos bonecos de cera, para
causar desgraças às pessoas com eles identificadas. “Aliás, a morte de
Germânico teria sido causada por este tipo de magia”. No livro “Do Vodu à
Macumba”, Márcia Cristina sustenta que o uso de bonecos nesta prática nasceu no
Egito, a partir de uma derivação do rito para criar figuras shabti descrita
no “Papiro de Turim, decifrado e publicado em Paris em 1868” . Esta fonte menciona
uma conspiração contra um faraó na qual “pretendia-se a morte do rei com a
incineração, pura e simples, de pequeninos bonecos de cera virgem, feitos à
forma e semelhança de cada elemento da corte” Em sua incursão na História, a
mesma autora descobriu que, em 1447,
a mulher do Duque de Gloucester foi acusada de haver
colocado fogo perto de uma efígie do rei Henrique VI, para que este sofresse uma
morte horrível. Em face de sua posição social, a mulher escapou à pena capital,
mas seus dois cúmplices, Roger Brolingbroke e um suposto feiticeiro, foram
condenados. Em 1900 a
figura do presidente McKinley, crivada de alfinetes, foi queimada nas escadas
da embaixada norte-americana, em Londres.
No tratado De
Enti Sprirituali” o médico-alquimista Paracelso assegura que “quando a
imagem de um ladrão for golpeada, este será forçado a voltar ao lugar onde
roubou por mais longe que tenha ido”. Inclusive, na antiga França, “se as
autoridades não conseguiam encontrar um criminoso, executavam-no em efígie,
declarando-o legalmente morto”. No romance gráfico brasileiro “A Vingança do
Vodu!” (Rio de Janeiro, 1980) a personagem Lia deixa-se desvirginar por um
homem, iludida por sua falsa promessa de casamento. Grávida e solitária, sofre
aborto natural. Finalmente, quando a negra “bruxa do pântano” lhe ensina a
trabalhar com dagyde a vitima torna-se algoz, trazendo desgraça e morte
a todos os seus inimigos. Noutro romance gráfico, “Feitiço”, o
personagem Dr. Mago exorciza uma jovem mulher que se contorce em convulsões e
destrói o “centro de macumba” pertencente ao mago-negro Kaluk, o qual havia
realizado o “trabalho” por encomenda de um homem rejeitado. “O boneco da moça
foi feito e espetado por longos alfinetes”. Dessa
forma, tanto na ficção quanto na realidade, o envultamento destinado à tortura
e morte foi freqüentemente citado como instrumento de vingança daqueles que se
sentem profundamente contrariados ou injustiçados pela malícia humana. Imagens
também teriam sido utilizadas para provocar amor e um livro de magia chamado Picatrix
ensina como fazer uma mulher apaixonar-se por um homem:
“Faz-se a
imagem de cada um deles com pó de pedra, misturado com goma e, depois,
colocam-se as imagens, frente a frente, em um vaso com sete brotos; queima-se o
vaso no forno, a seguir acende-se o fogo na lareira e põe-se um pedaço de gelo
no fogo; quando o gelo derrete, tira-se o vaso e a feitiçaria está completa. O
fogo derretendo o gelo representaria o amor aquecendo os corações do homem e da
mulher.”
Se a ação
sobre uma imagem pode atingir o homem negativamente porque a própria
representação não poderia, ao contrário, absorver o efeito deletério destinado
ao seu modelo, livrando-o do castigo do vício e do peso da idade? É isto que
acontece no clássico de Oscar Wide, O Retrato de Dorian Gray. Segundo
Kurt Kloetzel as pinturas rupestres da idade da pedra “não eram feitas por mera
recreação, nem devem ser vistas como ensaios de expressão artística”. As cenas
de caça abundante e graúda, entre outros motivos, serviriam de “alegorias
através das quais o homem buscava dominar a realidade, dela extraindo aquilo
que mais prezava: alimento farto, fecundidade”. Com o tempo formaram-se grandes
religiões que aglutinaram as funções de cura e benção, incluindo o ofício do
casamento, criando ritos próprios, mas deixando o monopólio das variantes
negativamente valoradas (vingança, manipulação) aos antigos feiticeiros. Daí o
debate teológico sobre se os elementos da eucaristia (hóstia e vinho) são
realmente o corpo e o sangue de Cristo ou apenas uma representação que obedece
ao princípio da imitação; se a cerimônia que imita a última Ceia
representa-a ou só a comemora.
Comentários
Postar um comentário