Tradições medievais sobre o Heliotrópio (A Pedra de Sangue)

    Segundo o geólogo Walter Schumann, a pedra heliotrópio é uma calcedônia opaca, verde escura, com pontos vermelhos. No comércio, o heliotrópio foi muito divulgado pela expressão "jaspe de sangue", mas esta pedra não é nenhum jaspe, ainda que possa ser confundido com este, devido à estrutura radial com agregados arredondados de aparência granulosa. O nome inglês bloodstone tem de ser traduzido com precaução por "pedra de sangue", pois este termo se refere também às hematitas. Muitas lendas se formaram em torno desta pedra. Segundo Walter Schumann, "foram-lhe atribuídos, durante a Idade Média, poderes mágicos, porque as pequeninas manchas vermelhas eram consideradas gotas de sangue de Cristo". 

Heliotrópio (A Pedra de Sangue).

    Uma edição do Les Admirables Secrets D'Albert Le Grand publicada em Colônia em 1703, diz-nos que os padres dos templos serviam-se do heliotrópio, importado de jazidas "na Etiópia, em Chipre e nas Índias", para adivinhar e interpretar os oráculos e as respostas dos ídolos. Em primeiro lugar, é preciso dizer que heliotrópio (do grego “trópico solar”) é um nome aplicado tanto a esta pedra semi-preciosa quanto a uma planta da família das borragináceas (podendo denominar de forma genérica a todas as plantas cuja flor se volta para o Sol). Esta planta era usada como ingrediente de fórmulas milagrosas na tradição da cabala prática. Por exemplo, no manuscrito Les Clavicules de Salomon, datado de 1641, preservado no acervo da Biblioteca Nacional da França, é dito que uma das providências a serem tomadas na confecção de um anel astronômico solar é a de colocar sob um aro forjado numa liga de ferro e ouro "uma erva denominada heliotropia (heliotrópio) e daquela denominada napellus (acônito), com um pouco de pele de leão e da de lobo, um pouco de pluma de cisne e de abutre e, sobre tudo, uma pedra denominada rubi".

    O Les Admirables Secrets D'Albert Le Grand, conhecido mais abreviadamente pelo nome de Grande Alberto, atribui aos "antigos filósofos" a alegação de que a pedra heliotrópio possui grandes virtudes quando associada à erva homônima. A tradição sugere que a associação do heliotrópio mineral com o vegetal produz "outra virtude muito maravilhosa sobre os olhos dos homens, que é a de suspender sua capacidade, vivacidade e penetração, e de cegá-los de forma a não poderem ver a quem os levam". Ou seja, a gema adquire a propriedade prodigiosa "de confundir os olhos das pessoas a ponto de tornar o usuário invisível". A idéia parece importada da mitologia grega, onde os artefatos de invisibilidade são propriedade dos deuses e titãs. Na Ilíada, lê-se que Atena colocou o elmo de Hades na cabeça, para se tornar invisível. Platão, n'A República, narra uma história fantástica sobre Giges, rei da Índia, (cerca de 687-651 a.C.), que usou um anel de invisibilidade encontrado junto ao corpo de um gigante para assassinar o monarca anterior, Candaules, e desposar a viúva deste:

"Ele era um pastor que servia em casa do que era então soberano da Lídia. Devido a uma grande tempestade e tremor de terra, rasgou-se o solo e abriu-se uma fenda no local onde ele apascentava o rebanho. Admirado ao ver tal coisa, desceu por lá e contemplou, entre outras maravilhas que para aí fantasiam, um cavalo de bronze, oco, com umas aberturas, espreitando através das quais viu lá dentro um cadáver, aparentemente maior do que um homem, e que não tinha mais nada senão um anel de ouro na mão. Arrancou-lhe e saiu. Ora, como os pastores se tivessem reunido, da maneira habitual, a fim de comunicarem ao rei, todos os meses, o que se dizia respeito aos rebanhos, Giges foi lá também, com o seu anel. Estando ele, pois, sentado no meio dos outros, deu por acaso uma volta ao engaste do anel para dentro, em direção à parte interna da mão, e, ao fazer isso, tornou-se invisível para os que estavam ao lado, os quais falavam dele como se se tivesse ido embora. Admirado, passou de novo a mão pelo anel e virou para fora o engaste. Assim que o fez, tornou-se visível. Tendo observado estes fatos, experimentou, a ver se o anel tinha aquele poder, e verificou que, se voltasse o engaste para dentro, se tornava invisível; se o voltasse para fora, ficava visível. Assim senhor de si, logo fez com que fosse um dos delegados que iam junto do rei. Uma vez lá chegado, seduziu a mulher do soberano, e com o auxílio dela, atacou-o e matou-o, e assim se assenhoreou do poder."

    O homem invisível pode agir livremente, conforme sua vontade, pois está protegido das reprimendas e comentários maldosos do vulgo. Henri Cornélio Agrippa (1486-1535) atribuiu a Alberto Magno e Willian de Paris o registro de crenças medievais, segundo as quais o heliotrópio ou tornasol confere glória constante e boa reputação a quem o carrega. Na versão inglesa de Francis Barret, o porte desta gema "faz do usuário uma pessoa segura, respeitável e famosa, e contribui para uma vida longa". O texto concorda com o Grande Alberto, segundo o qual "quem a usar terá uma boa reputação, boa saúde e viverá muito tempo". Mas o anel de heliotrópio não deveria funcionar exatamente como o hipotético anel de Giges. Aparentemente, ele deveria envolver seu possuidor em névoa... Na versão do Magus, 1801, Francis Barret omitiu um efeito citado por Cornélio Agrippa (1486-1535), segundo o qual o heliotrópio "tem admirável virtude sobre os raios do sol, pois diz-se que os converte em sangue. Quer dizer, faz o sol aparecer como em um eclipse, se lhe unta com uma erva que leva o mesmo nome e o coloca em vaso cheio d'água". Presumo que a pedra deveria ser fervida com suco de heliotrópio ou girassol até que a água em ebulição produzisse uma nuvem de vapor suficientemente densa para filtrar os raios solares. Apesar de incompleta, a descrição mais extensa deste rito aparece no Grande Alberto:

"Para fazer com que o Sol pareça cor de sangue deve-se usar a pedra que se chama Heliotrópio, que tem a cor verde e que se parece com a Esmeralda e é toda pintalgada como que de gotas de sangue. Todos os necromantes lhe chamam comumente a pedra preciosa de Babilônia; esta pedra, esfregada no suco de uma erva do mesmo nome, faz ver o Sol vermelho como sangue, da mesma maneira que num eclipse. A razão disto é que fazendo ferver água em grandes borbotões em forma de nuvens, ela espessa o ar que impede o Sol de ser visto como de costume. Contudo, isto não pode fazer-se sem dizer algumas palavras com certos caracteres de magia."

Se as palavras e caracteres de magia forem padronizados com aquela outra tradição da Les Clavicules de Salomon, onde se utiliza a erva, as palavras consistem na invocação voltada para o ocidente "no dia e hora de marte" dos anjos "Michael, Cherub, Gargatel, Turiel, Tubiel, Bael, os Silfos Camael, Phaleg, Samael, Och, Anael". Estes caracteres de magia são gravados no halo do anel:


O que se publicou nos diversos manuais de magia editados a partir do século XIX foram apenas cópias, muitas vezes incompletas, dos textos clássicos. Por exemplo, Gérard Encausse (1865-1916) reproduz "a título de simples curiosidade" as propriedades maravilhosas atribuídas às pedras que se relacionam com os sete planetas, pelos grimórios que "constituem o catecismo de nossos feiticeiros do campo". Diz que a pedra heliotrópio relaciona-se com o Sol e copia a descrição de suas virtudes de "um tratado muito curioso sobre pedras extraído de um livro sob os nomes de Evax e de Aaron (?) no Grand Albert". Também N.A. Molina teve acesso a uma tradução do Grande Alberto publicada numa coleção organizada "por um ocultista muito conhecido na Espanha e na América sob o nome de Mago Bruno". Mas em seu Antigo Livro de São Cipriano, o compilador preferiu repetir com poucas rasuras a coletânea de Gérard Encausse. A parte da sua coletânea que trata do heliotrópio elimina as referências a invisibilidade e transcreve exclusivamente a fórmula "para fazer com que o Sol pareça cor de sangue".

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